segunda-feira, 5 de setembro de 2011

[Rio de Janeiro - RJ] Genocídio e Espetáculo – Copa 2014 e Olimpíadas 2016 no Brasil

Algumas palavras sobre os processos vividos no Rio de Janeiro
dentro de uma perspectiva anarquista

O seguinte texto surge de uma reflexão coletiva realizada entre indivíduxs que circulavam na okupação anarquista Flor do Asfalto, que se situa no olho do furacão dos projetos de reurbanização e consequente endurecimento da repressão no Rio de Janeiro. A presente reflexão pretende contribuir, partindo de uma ótica anarquista, para o esclarecimento quanto aos processos de criminalização da pobreza e violência estatal declarada contra os movimentos de resistência rebelados frente a tais projetos.
Motivou muito a elaboração desse ensaio o seu poder de acrescentar mais elementos aos debates que já fervem no Rio de Janeiro e outras cidades, para que pessoas que não tiveram a oportunidade de vivenciar em suas próprias peles esta realidade tão particular possam, enfim, respirar um pouco desses ares. Essa iniciativa surge, também, com a intenção de contribuir para a guerra social, já que as estratégias do poder hierárquico já há séculos se reproduzem e se repetem em diferentes regiões e distintas épocas. Afinal, acreditamos que o que hoje se vivencia aqui pode ser nada mais que um estágio avançado dos próprios sintomas das grandes cidades, pelo menos no que diz respeito ao território controlado pelo Estado brasileiro.
Genocídio e Espetáculo
Rio de Janeiro, futura sede dos jogos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, emblemática metrópole erguida através de um paradisíaco e admirável ecossistema(1). Aqui é onde, em cada mínima fração de seus bairros e ruas, fazem-se evidentes os contrastes próprios do reino mercantil: espalhada por várias zonas da cidade, a pobreza gritante, a decadência profunda, o abandono administrativo em estado cru; em contrapartida, em outras regiões, o luxo higiênico faz a roupagem do cenário simulado e superficial de uma vida consumista e cômoda, constantemente vigiada por câmeras e policiamento ostensivo. Esse chão de tantas histórias, de tantas tramas conhecidas como parte de uma dita “história geral do Brasil”, é o palco onde também se produzem extremismos de caráter urbano que só neste lugar podem ser vivenciados, pelo menos na proporção em que se manifestam.
Segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – medida comparativa internacional para classificar o “desenvolvimento” econômico em âmbito territorial – na cidade do Rio convivem IDH`s de alguns dos bairros mais ricos do mundo, equivalente ao dos países mais acomodados da Europa, enquanto várias favelas têm o IDH equivalente ao de alguns dos países mais pobres do continente africano. A raiz disso pode ser encontrada no fato de sempre ter sido uma cidade onde coexistiram a extrema riqueza e a extrema pobreza, tendo sido um dos maiores portos de seres humanos sequestrados da África e vendidos como escravos. Além disso, durante 12 anos foi a capital do império português e, posteriormente à “independência”, foi a capital do Brasil até meados do século XX. Se antes os contrastes envolviam os palácios da nobreza e as senzalas e demais redutos negros, hoje ela se manifesta entre os opulentos bairros ricos – dignos de uma Beverly Hills – e as inumeráveis favelas.
A questão racial está inerentemente ligada à história do Rio de Janeiro. Se hoje existe uma política de barbárie assediando esta cidade, seguramente é por ela ser herdeira direta do regime escravista. Esse dado remonta ao momento da formação de um poder público autônomo e da própria constituição do Estado brasileiro. Com a chegada da família real portuguesa em 1808, a polícia carioca foi criada para edificar uma ordem pública que buscava enfrentar a população escravizada na rua, aterrorizando as pessoas negras e pobres com castigos físicos em público e eliminação física, além de combater a resistência que acontecia de diferentes maneiras, políticas e culturais, organizadas ou não. Desde as fugas rebeldes e consequentes formações de quilombos(2),  a capoeira, luta surgida na rua e ferramenta inseparável dxs negrxs revoltadxs, até revoltas organizadas que ocorreram ao longo de todo este período. A favela é filha e neta dessas resistências, berço de belíssimas manifestações culturais afro-descendentes, reduto de gente que nunca separou a luta do sorriso.
A origem das favelas no Rio de Janeiro remete a meados do século XIX, quando com o fim da escravidão uma parte das pessoas libertas se deslocou para a capital federal se fixando informalmente em lugares que passaram a ser denominados Favelas. O primeiro desses lugares a ser chamado de favela foi o Morro da Providência, localizado próximo à zona portuária, no centro do Rio, ocupado em 1897 por soldados negros do exército brasileiro, que  voltavam da Guerra de Canudos e haviam deixado de receber o soldo; sem condições financeiras, passaram a habitar o morro em barracos provisórios. O termo favela remonta ao arraial de Canudos, que estava situado na Bahia e havia sido construído num morro que tinha muitas plantas de uma espécie conhecida popularmente por Favela ou Faveleiro. Esta planta foi também encontrada no Morro da Providência e fez com que o mesmo inicialmente fosse denominado Morro da Favela. Com o tempo, o termo passou a ser usado para designar lugares de habitações populares. A favela, dentro da ótica urbana, é herdeira das senzalas, surge como um dos maiores expoentes do agudo segregacionismo, do isolamento, o refugo humano dentro de um regime que havia substituído o trabalho escravo pela escravidão assalariada, já que os tempos eram outros e exigiam novas formas de exploração.
Em contrapartida a favela é expoente da resistência cultural negra que seguiu se desenvolvendo, ambiente de manifestações culturais como o samba, a capoeira e as religiosidades afro-descendentes (como o candomblé e a umbanda), além de ser o hábitat natural da genuína malandragem. Portanto, o policial carioca é o capitão-do-mato moderno, que apenas substituiu o chicote pelo fuzil. Se antes a desvalorização da vida se traduzia na imagem dx negrx escravizadx, hoje passa a ser refletida na figuradx favelad
Camelôs enfrentam opressão da prefeitura com brava resistência
Camelôs enfrentam opressão da prefeitura com brava resistência
A Realidade Atual
O que se vivencia atualmente é uma guerra civil, num nível de conflito urbano armado inexistente na América Latina, camuflada como “guerra contra o narcotráfico”. As favelas estão sempre controladas pelos traficantes ou pelas milícias(3), e  mais atualmente pela polícia, que se utilizam de um arsenal de guerra para defender seu território. As balas do dia-a-dia são como arroz-com-feijão.
Seguramente a produção econômica na cidade gira em torno do turismo, sem dúvidas o Rio é uma das cidades mais turísticas do mundo. A “cidade maravilhosa” é feita de maravilhas para qualquer pessoa que usufrua de condições econômicas para consumi-las, a espetaculização e a maquiagem se fazem necessárias  para manter o ambiente da cidade confortável a essas pessoas. Esse quadro faz desencadear uma constante e cada vez mais acentuada criminalização da pobreza, que ocorre por diferentes frentes e por diferentes âmbitos no presente contexto, travestida como reformas urbanas e melhorias da qualidade de vida da população. Mas, efetivamente, são o encaminhamento de megalomaníacos projetos econômicos levados a cabo numa série de parcerias público-privada.
A realidade social do Rio de Janeiro torna cada vez mais explícita a linha tênue entre diferentes estratégias da gestão estatal, entre a ditadura e a democracia. Afinal, a tortura, a eliminação física e o encarceramento (que ganharam visibilidade no período da ditadura militar por atingirem setores da classe média), para x negrx, pobre e faveladx, sempre foram uma realidade. Num período de tão aclamada democracia são fatos que se tornam cada vez mais e mais presente. A partir das novas gestões do governo do estado (nas mãos de Sérgio Cabral Filho desde 2006) e da prefeitura da cidade (nas mãos de Eduardo Paes desde 2009), distintas táticas têm sido utilizadas, iniciativas que surgem por diferentes lados:
1) o combate ao trabalho de rua informal, que diante de tal realidade se torna uma das principais alternativas de sobrevivência as/aos que não têm dinheiro;
2) a retomada do controle de zonas antes controladas pelo narcotráfico;
3) os projetos de obras urbanas, como a revitalização da zona portuária;
4) a avassaladora presença de drogas como o crack, e mais recentemente o OXI, que reforçam o controle populacional.
Somando-se a todos estes elementos está o próprio extermínio de civis pelas mãos da polícia, justificado como baixas de guerra em meio a uma suposta guerra contra o tráfico, muitas vezes se utilizando dos chamados Autos de Resistência(4) para camuflar execuções sumárias. O que existe na prática é um genocídio silencioso, que além de atingir os supostos grupos visados, que seriam as facções do narcotráfico, atinge, sobretudo, toda a camada de pessoas que se encontra no meio da zona de conflito. As cifras de mortes em mãos de forças policiais no Rio de Janeiro são altíssimas, como as dos três últimos anos. Em 2008, foram 611 mortes; em 2009 foram 495; e em 2010 foram 545 – números que se aproximam à quantidade de pessoas mortas nas chuvas que atingiram a serra do Estado do Rio, em janeiro deste ano, considerada a “maior catástrofe natural” da história do Brasil.
Com cânticos sinistros de louvação à guerra, entoados em seus treinamentos, o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) não deixa dúvidas quanto à sua tarefa: “homem de preto/ qual é a sua missão?/ é invadir a favela/ deixar corpo no chão”; ou ainda: “vou me infiltrar numa favela/ com fuzil na mão/ vou combater o inimigo/ provocar destruição”. O BOPE foi concebido e adestrado para ser uma máquina de guerra e exterminar faveladxs. O fato de seu símbolo ser uma caveira não é meramente simbólico.
Um dos projetos pilotos do atual governo do estado, inserido na lógica de reestruturação e maquiamento da cidade, são as maquiavélicas UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora). Estas são unidades da polícia que através da invasão permanente estão retomando o controle das comunidades que antes estavam sob o controle do tráfico.
Coincidentemente ou não, todas estas comunidades são favelas em zonas de elevado interesse econômico como a zona sul e as áreas nobres da zona norte, além das demais zonas de interesses turístico/econômicos(5). As UPP’s surgem como o ápice da “guerra” ao narcotráfico, demarcam um momento em que o Estado finalmente estaria dando uma resposta mais efetiva e enérgica ao tráfico. A presença permanente da polícia na comunidade permite que a mesma aja com completa impunidade (uma espécie de estado de exceção não declarado), atuando descaradamente por meio da inconstitucionalidade, invadindo constantemente domicílios e aterrorizando moradorxs. A ironia é que em nenhuma comunidade onde atualmente existem UPP’s acabou-se efetivamente o tráfico: muito pelo contrário, mantém seu comércio vivo e atuante, embora ostente menos armas, agregue maior suborno para os policiais, sem tiroteios porém seguindo como sempre.
As UPP’s estão profundamente relacionadas com o processo de higienização sócio-econômica que está em andamento por toda a capital carioca, atuam como precursoras de um inovador processo de gentrificação(6) de áreas favelizadas. Após a sua intervenção, são cortadas as instalações clandestinas de energia elétrica e água, causando, desde o início, um aumento drástico do custo de vida nesses locais e a consequente evasão indireta da população pobre que antes habitava a área – uma espécie de despejo por etapas.
Na zona sul, barracos já são vendidos e alugados a preços altíssimos, ao mesmo tempo que processos de saneamento básico começam a ser efetivados onde antes não existiam. Mas a quem são destinadas essas “melhorias”? Logicamente, às novas pousadas (ou outras variações de negócios privados) e aos novos frequentadores do lugar: turistas e indivíduos da classe média.
Essas operações de chacina em massa, organizadas pelo Estado e suas parcerias privadas, só são inteiramente possíveis após a inserção nas comunidades do braço esquerdo dessas intervenções: as ONG’s. Incluídas no processo de contenção de danos, fica a cargo das instituições não governamentais a infiltração nas favelas com projetos de fundo de desenvolvimento social. A presença dessas organizações nas comunidades é, por sua vez, marcada por ambiguidades. Enquanto essas instituições “propiciam” desenvolvimento sócio-cultural localmente, está no pano de fundo de sua inserção seu caráter desde o princípio apaziguador, os lucros possibilitados pelas isenções fiscais e pelos investimentos transnacionais que muitas vezes compõem sua sustentabilidade, além de sua atuação no mapeamento e cadastro de moradores, induzindo-os também a assumirem o papel de delatores da comunidade. Há casos similares envolvendo os mais recentes programas sociais do governo federal junto às áreas urbanas consideradas como “áreas de risco” (que têm como piloto o programa Fica Vivo).
É nesse cenário geral de retaliações e invasão marcadamente militar que se insere o Choque de Ordem, iniciativa criada no início de 2009 pelo atual prefeito Eduardo Paes, organizada pela Secretaria de Segurança Pública, reunindo diferentes órgãos como a guarda municipal, polícias civil e militar, a Comlurb, a Secretaria de Habitação num conjunto de ações que visam a “restituir a ordem na cidade”. Focando-se sobretudo no combate aos/as camelôs, na remoção de moradorxs de rua, entre usuárixs e não usuárixs de crack, e nos inumeráveis despejos de moradias consideradas ilegais ou irregulares, como é o caso das ocupações urbanas e de favelas ou partes de favelas que estão sendo removidas por estarem situadas  no caminho dessas reformas.
O Projeto Porto Maravilha
O principal entre os atuais projetos de reurbanização dentro da cidade do Rio de Janeiro, com certeza, é o de revitalização da zona portuária, chamado Porto Maravilha, a maior iniciativa público-privada do Brasil, numa parceria entre governos municipal, estadual, federal e iniciativas privadas.Toda a região do porto foi privatizada, passando a ser gerida, nos próximos 15 anos, por três empresas privadas. Nas palavras do próprio prefeito:
“Qual é o sonho de toda empresa privada? Ter grandes lucros, constantes ao longo do tempo e sem risco. A Prefeitura do Rio está realizando esse sonho para três delas: OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia, que juntas formam o consórcio gestor do Porto Maravilha. A engenhosa parceria público-privada (PPP) não pode ser vista de outra maneira: um repasse de dinheiro público para três grandes empreiteiras privadas, sem nenhuma vantagem aparente para o Estado”.
O projeto abrange uma área de 5 milhões de metros quadrados, que tem como limites as avenidas Presidente Vargas, Rodrigues Alves, Rio Branco e Francisco Bicalho. Passa por quatro bairros: Centro, Santo Cristo, Saúde e Gamboa. Os investimentos incluem a criação e implantação de museus, a construção de luxuosos estacionamentos para os cruzeiros turísticos, a construção de edifícios habitacionais de classe média, a construção do maior aquário da América Latina, além de novas sedes de bancos, incluindo o Banco Central. A primeira fase de obras se iniciou em 2009 e continua em andamento, com implementações de base como a instalação de novas redes de água e a reurbanização do Morro da Conceição. A nova fase de obras se inicia em 2011 e inclui a realização de investidas mais ambiciosas, como a demolição do elevado da Perimetral, localizado sobre a Avenida Rodrigues Alves. O objetivo é que se concluam todos os projetos de reurbanização até o ano de 2015.
Por baixo dos panos do dito projeto, uma série de empreendimentos repressivos e violações da dignidade das pessoas estão sendo cometidas sequencialmente. Por muitos anos a zona portuária foi uma das zonas mais desprezadas e cinzas da cidade do Rio de Janeiro, cenário de quase quatro séculos de histórias de derramamento de sangue e de resistência política e cultural, muitas vezes refúgio e alternativa para xs que encontraram na ocupação de imóveis ociosos um meio prático de obtenção da moradia. São inumeráveis os despejos que atingiram ocupações urbanas, além de casas na Providência, que serão removidas para a construção de um teleférico.
O morro da Providência conta com uma UPP desde abril de 2010, o que garante a “segurança” para o prosseguimento dos projetos. Além de tudo isso, incêndios misteriosos atingiram ocupações, comunidades (como a do Rato Molhado, na zona norte) e negócios informais (como o que foi provavelmente o maior desses incêndios, que consumiu o camelódromo da Central do Brasil, no dia 26 de abril do ano passado). De modo impressionante, este mercado popular ficava muito próximo ao quartel general do Corpo de Bombeiros Militares do Rio de Janeiro, e mesmo assim o socorro demorou mais de uma hora para agir. Não era mágica o fato de a prefeitura já contar, desde antes, com planos de “revitalização” para o lugar.
Na prática, este projeto nada mais é do que um dos pivôs dos processos de maquiagem que estão tomando a cidade, é o preparo para os grandes eventos que estão por vir – Copa do Mundo 2014, Olimpíadas 2016. Como todas as operações higienistas, é a tomada, por parte das classes mais ricas, de uma zona antes ocupada por camadas de menor renda.
Não é possível saber ao certo que tipos de mazelas ficam como legados de empreendimentos tão atrozes e imediatistas. Mas há, sim, previsões possíveis de serem sugeridas, por saltarem como obviedades a qualquer olho minimamente atento. As perguntas que mais inquietam ficam abafadas pelos anos “promissores” dos mega-eventos de 2014 e 2016, num cenário desastroso de ignorância, medo e sabatinas turísticas.
O aturdimento fica acalmado pelo fanatismo nonsense de um esportismo crescentemente publicitário, enfiado na onda de marketing de guerra que coloca na ordem do dia o extermínio aberto a serviço do cumprimento de metas do mercado de ações da construção civil e da especulação imobiliária. Num futuro não muito distante, passado o entorpecimento dos jogos, ficarão as heranças de questões propositalmente mal-resolvidas, acúmulos deixados pelo descaso, que só mesmo a guerra social declarada pode suprir.
Até lá e desde agora, já assumimos uma posição: nossa recusa é irredutível – o futuro já é agora.
A Okupa Flor do Asfalto
“Desprezíveis perambulam de um porto a outro. Diante do maquinário pesado, observam com certo desgosto os muitos olhos de um futuro deixado para depois. Rumores de colapso, dias de guerra… minutos de paixões cavados do subterrâneo, das ilhas e das ruas. Há o cais do porto, mas há também portos alucinados./ No caos do porto tremula, em pano preto-desbotado, uma bandeira pirata, agitada pelo vento da maré e pela velocidade das máquinas… e sabe-se que é por ali que vagam esses renegados. De porto a porto, ‘cospem fumos de cigarro’ – talvez haja mais a se fazer do próprio pigarro do que de qualquer moral civilizada”.
(Coletivo Casa Aberta … piratas enfermos não dizem nada…)

Okupa Flor do Asfalto
Surgida da iniciativa de diferentes pessoas do meio libertário, foi ocupada no dia 17 de outubro de 2006, na Av. Rodrigues Alves, a Flor do Asfalto, tendo como proposta, para além de um espaço de moradia coletiva, de ser um espaço de criação política e contracultural. A partir daí, diferentes iniciativas e projetos passaram a germinar neste lugar, como a organização de uma biblioteca, ateliês de arte e serigrafia, um herbário, entre distintas práticas visando uma vivência mais sustentável e em maior harmonia com a terra, com a manutenção de hortas e de um sistema agroflorestal. Nestes quase 5 anos muitas foram as iniciativas e atividades desenvolvidas na Flor, desde oficinas e conversas até festas e apresentações de bandas. A Flor assume publicamente sua postura de confrontamento frente à realidade existente, suas relações de poder e políticas opressivas, trazendo à tona a necessidade de retomada da vida por aquelxs que estão se movimentando em seu interior e a guerra experimentada em cada mínima instância da existência.
As diferentes rupturas e alternativas com esse mundo se fazem não só como alternativas em si, mas também como enfrentamento, intervenção na realidade, um posicionamento radical em meio ao olho do furacão. Atualmente, a okupação está com seus dias contados por se situar exatamente na zona que abarca a nova fase de obras do projeto Porto Maravilha. Será um dos próximos alvos das investidas que precedem as obras. Por manter firmeza no rechaço à existência do Estado e de demais aparelhos repressivos, que se pode ilustrar na polícia, não se considera a possibilidade de diálogo ou acordo. Ainda que considerando, em certas ocasiões, tal possibilidade, sempre se teve em conta que o jogo das leis é parte do jogo do inimigo.
Movimentar-se, não cair na inércia, tem sido a estratégia usada para se contrapor ao presente momento. É nesse sentido que, de dentro desta okupa, vociferam comunicados que explicitam posicionamentos de suas/seus okupantes, visando à criação de laços de solidariedade que gritem e ecoem mais além das linhas imaginárias da cidade do Rio de Janeiro, já que os mesmos laços, em momentos como este, são sem dúvida o maior arsenal que oprimidxs rebeladxs podem encontrar.
NOTAS
(1) O ecossistema onde se situa a cidade do Rio de Janeiro é o da Mata Atlântica, que já foi a segunda maior Floresta Tropical da América do Sul, atingindo toda a zona litorânea do Brasil e chegando até a Argentina e o Paraguai. Hoje, existe apenas 10% do que foi um dia este bioma. Ainda assim, permanece como um dos ecossistemas de maior biodiversidade no planeta.
(2) Quilombos são as zonas autônomas existentes em muitas áreas território brasileiro, de grande concentração de descendentes daqueles africanxs escravizadxs há séculos. Surgiram como aldeias criadas por negrxs fugidxs e rebeladxs, normalmente em zonas mais afastadas da cidade, mas também em perímetros urbanos, criando uma economia de subsistência mas também mantendo uma constante conflitividade e ataque ao regime escravista. O primeiro, e com certeza o mais expressivo, foi o de Palmares, situado na Serra da Barriga, em Alagoas, que durou mais de cem anos entre os séculos XVI e XVII. Muitos dos que ainda existem têm a legitimidade de sua herança dessas terras reconhecidas em escrituras e legitimada através das lutas desses povos. Alguns dos recentes empreendimentos de reurbanização se baseiam na declarada intolerância diante desses dados e dessas provas históricas, e literalmente tratoram comunidades quilombolas, expulsando-as de suas terras sem consideração alguma dessas escrituras e da história de resistência quilombola.
(3) Milícias são os grupos paramilitares formados por policiais, ex-policiais, bombeiros, dentre outros, que tomaram o controle clandestino de várias favelas.
(4) Juridicamente seria a justificativa para a tomada da ação violenta por parte de policiais. A execução se tornaria consequência da resistência ofensiva por parte do “criminoso”.
(5) Existem projetos específicos para o complexo do Alemão, entre outras favelas, que consistem na instalação de teleféricos nas comunidades, para que turistas tenham uma vista panorâmica da região.
(6) Gentrificação ou “nobilização” (do inglês gentry, grosseiramente nobreza, em português): intervenção urbanística que atua mediante a reocupação de regiões da cidade, baseada em planos de “enobrecimento urbano”, na expulsão de camadas mais pobres para que uma classe média re-habite o local. Um termo também muito cunhado, principalmente pelos movimentos de resistência a essas operações, é “higienização”, que traz à luz o aspecto classista de “faxina” social implicado nessas medidas. Essas políticas urbanísticas vêm acompanhadas de várias outras medidas sociais que assegurem sua eficiência, muitas das vezes se tornando uma declarada guerra contra a gente pobre que antes habitava essas áreas, um verdadeiro massacre anunciado. Alguns urbanistas utilizaram o ambíguo e perigoso termo “regeneração”, pois, para além de sua conotação classista, em algumas cidades essas medidas assumem caráter evidentemente racista. São programas gentrificadores os mesmos que os governos e suas parcerias privadas chamam de “revitalização”, e que no Rio de Janeiro se identificam no truculento Choque de Ordem.
Fontediasemcompras
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